A posição do vice-presidente do CDS e candidato da Aliança Democrática, Paulo Núncio, é um retrocesso significativo nas conquistas sociais das últimas décadas. Ao defender um novo referendo como “a única forma” de reverter a despenalização do aborto, Núncio ignora não só o veredito já expresso nas urnas mas também a complexidade da questão que vai muito além do binómio legalidade-ilegalidade.
A história tem mostrado que a despenalização do aborto não é uma questão que se esgota em referendos ou em dogmas religiosos. É uma questão de saúde pública, de direitos humanos, de justiça social. A narrativa de que apenas a via do referendo pode decidir sobre a despenalização ignora os dramas reais vividos por mulheres que são forçadas a escolher caminhos perigosos da clandestinidade, quando lhes é negado o acesso a um serviço de saúde seguro.
Odete Santos, numa intervenção em 2004, trouxe à luz do debate polÃtico a realidade crua e muitas vezes esquecida: mulheres de todas as esferas sociais enfrentam o dilema da gravidez indesejada. As estatÃsticas não discriminam – as complicações e os óbitos resultantes de abortos inseguros atingem todas, independentemente da classe social ou do nÃvel educacional. Ao despenalizar o aborto, Portugal reconheceu a importância de proteger a vida dessas mulheres, de oferecer uma estrutura de apoio familiar mais sólida para as crianças existentes, e de reduzir as práticas inseguras que colocam em risco a saúde feminina.
A despenalização do aborto em Portugal foi um passo em direção à equidade. A acessibilidade ao aborto seguro é uma questão de justiça social, que distingue entre quem tem e quem não tem recursos para procedimentos seguros. Ignorar isso é perpetuar um ciclo de desigualdade e de riscos desnecessários.
É imperativo que o diálogo sobre o aborto ultrapasse o palco das ideologias e entre na esfera pragmática dos direitos humanos. Não se trata de promover o aborto como método anticonceptivo, mas de reconhecer uma realidade incontornável: a gravidez indesejada é uma questão factual, e a penalização apenas empurra as mulheres para soluções sombrias e perigosas.
A resposta não está na regressão legal ou na organização de mais referendos, mas sim na educação para a saúde reprodutiva, no planeamento familiar acessÃvel e na garantia de autonomia das mulheres sobre os seus corpos. A sociedade portuguesa já demonstrou maturidade ao abordar este tema com a seriedade que merece, e seria um grave erro desconsiderar os passos já dados em direção a uma sociedade mais justa e igualitária.
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